Gerard Ryle: “O próximo escândalo será com uma grande empresa, algumas ganham todo o seu dinheiro com a extração dos nossos dados privados”
O homem que dirige o ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação) desde 2011 e esteve à frente dos Panama Papers, dos Luanda Leaks e de outros projetos ambiciosos que têm envolvido o esforço coordenado de centenas de repórteres no mundo inteiro, veio a Portugal para a Estoril Conferences. Uma oportunidade para uma conversa sobre jornalismo de investigação, sobre o que devemos investigar no futuro e, também, sobre Rui Pinto
Grande repórter
Os leitores e telespectadores estão habituados a ouvir falar de jornalismo de investigação. Mas esta categoria de jornalismo não é tão evidente como parece. Para si, o que é o jornalismo de investigação?
Para mim, trata-se de contar histórias que os poderosos não querem que sejam contadas. É a essência do que o jornalismo deve ser. Há o tipo de jornalismo óbvio: acedemos a um processo judicial e reportamos. Mas depois há o jornalismo de investigação, que consiste em escavarmos para descobrir o que está realmente a acontecer e não acreditar na palavra de ninguém, não ouvir apenas a propaganda, mas analisar documentos, muitas vezes falar com pessoas nos bastidores, não com os poderosos, mas com pessoas que estão envolvidas em algo — e depois contar a verdadeira história. Muitas vezes isso tem a ver com atos ilícitos, porque as melhores histórias que se podem revelar como repórter de investigação envolvem más condutas. E também envolvem corrupção sistémica ou falhas sistémicas. Falo de coisas que esperamos que funcionem, como os medicamentos não fazerem mal às crianças, por exemplo, ou as estradas serem seguras. Esses são os sistemas. Se os sistemas falham, o papel do jornalista é expor isso. Mostrar o que está errado para que alguém o possa corrigir.
O modelo de negócio dos meios de comunicação social dominantes continua muito ligado à ideia de que é preciso dar mais às pessoas em vez de dar melhor, porque isso significaria, em muitos casos, dar melhor mas menos. Parece que o jornalismo de investigação tem a ver com dar melhor mas menos. Como vê esta questão?
Penso que temos de ver o papel do jornalismo de investigação num contexto mais alargado. Nos últimos 20 anos, o jornalismo tinha um modelo de negócio assente em publicidade e esse modelo está a morrer. E penso que estamos a assistir a uma mudança nos meios de comunicação social. O problema é que o jornalismo de investigação foi sempre a parte mais cara e perigosa dos ‘media’. Era a parte que os editores ou proprietários de jornais tinham em mente quando decidiam cortar. Era dispendiosa e envolvia litígios, porque as pessoas não gostavam do que se estava a noticiar e, por isso, recorriam a ações judiciais. É um dilema para o jornalismo porque é a única parte do jornalismo de que a sociedade precisa. É bom poder ler críticas de peças de teatro ou livros ou poder ouvir o que um político disse ontem no parlamento, mas o que a sociedade realmente precisa é que a corrupção ou as falhas sistémicas sejam expostas. Essa é a parte do jornalismo em que, na minha opinião, menos se investe e corre maior risco de morrer devido ao colapso do modelo de negócio.
É de uma época em que só existia o jornalismo de investigação tradicional, individualizado e fechado nas redações. Como é que recorda a sua experiência na Austrália, onde desenvolveu a sua carreira?
Eu venho de uma era em que o modelo de negócio estava a funcionar e havia muito dinheiro. As reportagens de investigação tinham sido glamourizadas devido ao Watergate e a casos muito famosos como esse, e os donos dos jornais e televisões queriam ser vistos a fazer esse tipo de trabalho. Mas isso não estava a ser feito porque o modelo de negócio dependia de manter as empresas satisfeitas. E, por definição, se estivéssemos a fazer boas reportagens de investigação, estaríamos a fazer as pessoas infelizes. Uma das razões pelas quais deixei os media mainstream e fui para o ICIJ foi porque me sentia cada vez mais frustrado com a incapacidade de fazer o que achava que devíamos fazer, que era passar por vezes semanas, meses e até anos a analisar um problema e a tentar resolvê-lo, expondo o que estava errado naquilo que se via. No final, acabei por deixar o jornalismo de investigação. Fui para a direção do jornal porque senti que não conseguia fazer este trabalho ao nível que queria. Quando surgiu a oportunidade de me juntar ao ICIJ, foi isso que me motivou: a hipótese de o fazer. Era uma organização sem fins lucrativos. Não era preciso cumprir prazos. Não era preciso ouvir as preocupações comerciais da organização para a qual se estava a trabalhar. Estava puramente a fazer jornalismo de investigação pelo simples facto de fazer jornalismo de investigação. E acho que essa pureza é o que nos tem guiado.
Como foi possível criar o ICIJ? É uma organização que corresponde a um movimento contra-intuitivo sobre os valores críticos da profissão de jornalista: uma obsessão com o ângulo nacional e uma necessidade permanente de competir com os outros.
Tivemos muita sorte. Quando assumi a direção do ICIJ, há 12 anos, os modelos de negócio estavam em colapso e os meios de comunicação começavam a perceber que tinham de ouvir sobre novas formas de trabalhar. Na altura, tivemos também a sorte de a tecnologia nos permitir trabalhar de forma muito barata. Ainda há 15 anos, fazer uma chamada telefónica para o estrangeiro custava uma fortuna. Atualmente, é possível fazer tudo isso gratuitamente ou construir sistemas informáticos para pesquisar grandes quantidades de informação. O outro fator que contribuiu para isso é o facto de estarmos numa era eletrónica em que a informação está disponível de uma forma que nunca esteve disponível nas décadas anteriores. Hoje em dia, os whistleblowers [denunciantes] copiam milhões e milhões de ficheiros. O desafio para o jornalismo mudou. Quando comecei, há 35 anos, o desafio era encontrar informação. Agora, temos um novo desafio: dar sentido a grandes quantidades de dados, condensá-los e torná-los compreensíveis para o público. O ICIJ conseguiu uma situação ideal, em que estes fatores combinados nos permitiram fazer um tipo de jornalismo nunca feito. O repórter de investigação tradicional é um lobo solitário. Não quer falar com os seus editores; não quer partilhar a informação com os seus colegas. Nós aparecemos e dissemos: vamos partilhar tudo. Partilhamos a história e a carga de trabalho, não só com os colegas do nosso país, mas com colegas do mundo inteiro.
Diria que as escolhas das histórias em que investimos são tão importantes como os métodos que utilizamos para as investigar e as descobertas que acabamos por fazer?
Fizemos uma escolha deliberada do tipo de histórias que desenvolvemos. Precisamos de histórias com o mesmo interesse para cada repórter em cada país. Isso presta-se a histórias sobre grandes volumes de dados, porque se tivermos dados únicos para cada país, é muito mais fácil conseguir que um repórter desse país se interesse pelo tema. Assim, eles têm algo único sobre o seu país, e alguém noutro país também tem algo único. Mas ser capaz de partilhar os aspetos globais de uma determinada história também é essencial. Um dos fatores que descobrimos é que as histórias que pensávamos serem exclusivas do nosso próprio país — pensávamos, ok, isto só interessa aos portugueses — fazem parte de tópicos globais que afetam muitas pessoas em muitos países diferentes. Por isso, ao partilhar a informação com outros repórteres, podemos fazer uma história muito mais profunda e com mais nuances no final, porque temos muito mais contexto sobre o que estamos a ver.
Uma das explicações para o grande sucesso alcançado pelo ICIJ é o facto de ter encontrado uma narrativa adequada para o público global, na sequência da grande crise financeira de 2008. Os estados tiveram de salvar os bancos e não puderam financiar políticas públicas de saúde e educação porque os ricos esconderam as suas fortunas no estrangeiro, evitando pagar impostos. Concorda que este foi o ingrediente fundamental para revolucionar o jornalismo colaborativo internacional?
Foi a história certa na altura certa. Durante anos e anos, ficámos cada vez mais frustrados porque quase toda a corrupção que víamos no nosso próprio país tinha como destino as Ilhas Virgens Britânicas ou as Ilhas Caimão. E diziam-nos sempre: oh, não há nada de errado, é tudo legal, não há nada para ver aqui. O facto de as empresas fugirem aos impostos recorrendo a empresas-fantasma complexas foi sempre explicado de uma forma que, bem, isso é algo que os jornalistas nunca conseguirão compreender. Mais uma vez, penso que o grande avanço se deveu à digitalização da informação nestes paraísos offshore, onde as pessoas estavam a copiar os dados em grandes volumes. Ao disponibilizar essa informação aos jornalistas, pudemos compreender este mundo pela primeira vez. Isso permitiu-nos ver um nível de corrupção e desigualdade que pudemos passar a expor. Também penso que não devemos subestimar o facto de começarmos uma história e sabermos que alguém saberá sempre mais sobre esse assunto e entrará em contacto connosco, porque algumas das melhores fontes são os nossos leitores. Uma história leva sempre a outras histórias. Os Panama Papers, que são a nossa história mais famosa, começaram com os Offshore Leaks. Houve uma sequência de acontecimentos que levou a isso. E, obviamente, as histórias que aconteceram desde os Pandora Papers foram todas devidas aos Panama Papers. Foram novas fontes que avançaram com novos conjuntos de informação.
Acredita que as histórias sobre a crise climática podem suplantar a onda de investigações sobre o mundo offshore?
Atualmente, quase todas as histórias são globais. Há temas globais como as alterações climáticas, a saúde ou a segurança alimentar. Podemos investigar qualquer um destes temas globalmente. Também se assiste a um aumento de histórias locais com implicações globais. Uma das coisas que sempre me motivou foi uma série de histórias que encontrei na Austrália, onde os repórteres têm muitas vezes informações valiosas para os repórteres de outros países. No entanto, como só trabalham para um órgão de comunicação social num determinado país, nem sequer param para pensar em quem poderiam ajudar com a sua informação, porque não faz parte da nossa natureza de repórteres de investigação partilhar. Um dos avanços significativos que fizemos aqui foi introduzir esta ideia de partilha radical, em que não há problema em partilhar porque, se partilharmos, acabamos por ter um produto muito melhor. E isso é contra-intuitivo em relação ao que temos feito durante décadas como repórteres de investigação. Éramos lobos solitários. Trabalhávamos talvez com uma ou duas pessoas. Mas, de modo geral, estávamos a trabalhar num pequeno vácuo. E agora não estamos a trabalhar em vácuos. Estamos a trabalhar abertamente em redes.
Se pudesse escolher uma história para o futuro, um tópico ou um ângulo que pudesse ser ainda maior do que os Panama Papers e os Pandora Papers, qual escolheria?
As infrações cometidas por grandes corporações ainda não foram reveladas. Sei que nos deparamos frequentemente com escândalos que envolvem grandes empresas. No entanto, penso que o nível de corrupção sistémica que existe no mundo é muito maior do que os jornalistas alguma vez revelaram. Por isso, penso que o próximo grande escândalo potencial virá de uma grande empresa. Vamos descobrir o que está realmente a acontecer. Suspeito que se tratará de pessoas que põem o dinheiro à frente dos direitos da comunidade — o dinheiro à frente das pessoas.
As grandes corporações têm sido um desafio nos EUA. Tem havido uma discussão pública sobre elas.
Estou a falar de empresas que vendem dados. Cada um de nós é objeto de mineração de dados. Algumas empresas ganham todo o seu dinheiro com a extração dos nossos dados privados e dos dados dos nossos filhos. Nunca o questionámos e nunca o compreendemos verdadeiramente. Mais uma vez, é um pouco como nos primeiros tempos do mundo offshore. Quando olhávamos para esse mundo, estávamos tão confusos sobre o que estávamos a ver porque não conseguíamos ver o quadro completo. Não conseguíamos ver nem sequer uma parte do quadro. Qualquer história em que sabemos que não estamos a ver o quadro completo é potencialmente adequada para o jornalismo de investigação. Mas, mais uma vez, não são apenas os jornalistas de investigação que têm de estar dispostos a investigar. Também é preciso haver pessoas dispostas a ajudar. Estou a falar de pessoas que estão por dentro e sabem informações que provavelmente querem contar-nos. É preciso facilitar-lhes a tarefa de partilharem essas informações e evitar que as suas vidas sejam arruinadas por causa disso.
Com a presença crescente na Europa do populismo de extrema-direita e das ondas de desinformação nas redes sociais, que esperança podemos ter de que o jornalismo ajude a salvar a democracia nos nossos países?
O jornalismo tem um papel muito importante a desempenhar na salvação da democracia. Estou a falar de nós, coletivamente, porque todos temos uma responsabilidade. Desperdiçámos os bons tempos, quando os negócios corriam bem e havia muito dinheiro. Estávamos convencidos de que era devido ao nosso jornalismo que as pessoas compravam os jornais ou viam televisão, mas, na realidade, viam-nos tanto pela publicidade como pelo jornalismo. Desperdiçámos essa oportunidade de incutir confiança no nosso trabalho. E perdemos essa confiança. O que temos de fazer é reconquistar a confiança. Só se pode fazer isso fazendo um jornalismo inquestionável. Quando temos 600 jornalistas a analisar o mesmo conjunto de dados e a chegar às mesmas conclusões, ninguém pode sugerir que somos tendenciosos e o nosso jornalismo é falso. E penso que é esse o tipo de jornalismo que temos de apresentar para salvar a democracia, porque as pessoas precisam de poder confiar no nosso trabalho. Por isso, voltando a algo que disse anteriormente, penso que temos de fazer menos mas melhor. É esse o caminho a seguir, em vez de tentar fazer demasiado ou saltar para cada novo Twitter ou nova versão do Twitter que aparece, tentando acompanhar a tecnologia. Temos de voltar a fazer o que devíamos ter feito desde sempre, que é jornalismo essencial. Trata-se de uma questão de interesse global? Há uma falha sistémica? Através do jornalismo, podemos provocar a mudança, porque é esse o nosso papel na sociedade — melhorar as coisas.
Como é que vê o que se está a passar com Rui Pinto e como é que a justiça em Portugal o tem tratado?
Não conheço toda a história do Rui, porque quando nos envolvemos com o Rui, isso tinha a ver com o Luanda Leaks. Portanto, não estávamos envolvidos na história original dos Football Leaks e não tínhamos contactado o Rui nessa altura. E só mais tarde se soube que o Rui era a fonte do Luanda Leaks. Por isso, o meu argumento é que, se alguém nos dá uma informação, temos o dever, enquanto jornalistas, de analisar os dados e avaliar a informação em função do interesse público. A lei diz, especialmente nos EUA, onde trabalhamos, que nos é permitido fazer isso. Só devemos olhar para o contexto do interesse público dos documentos que recebemos e se devem ser publicados. Penso que o Rui levantou questões que a sociedade deve levar a sério. Levantou questões de corrupção sistémica e em grande escala. As autoridades deveriam concentrar-se mais nas suas revelações do que em tentar processar ou prender alguém. Deveriam tentar cooperar com ele em vez de o perseguir. Não estou a dizer que ele possa ou não ter cometido erros, e não estou a sugerir que abandonemos o Estado de direito. Mas penso que temos aqui uma oportunidade para combater a corrupção. E devemos concentrar-nos na corrupção e no interesse público e não na pessoa.
Chegou a conhecê-lo?
Sim, encontrei-me com ele várias vezes ao longo dos últimos anos. E falámos longamente. Acho-o muito simpático. Ele parece motivado pelas coisas certas. Agora, se ele cometeu ou não erros no passado, eu não sei. Quer dizer, isso parece estar a vir ao de cima. Mas, mais uma vez, não tinha conhecimento de nada disso.
Que importância tem Rui Pinto para o jornalismo que o ICIJ pratica?
Conseguimos obter centenas de milhares de documentos sobre Isabel de Santos. E acabámos por fazer um grande projeto multinacional sobre a sua corrupção. Os resultados dessa história estão ainda a surgir. Tem-se falado muito dos seus bens — ela era a mulher mais rica de África; quando publicámos, tinha a reputação de ser um génio financeiro, mas conseguimos mostrar, através dos documentos, que tinha sido o seu pai, o antigo ditador de Angola, que lhe tinha proporcionado o sucesso empresarial. Em resultado destas histórias, os seus bens foram apreendidos em todo o mundo, muito dinheiro foi devolvido a Angola e foi-lhe emitido um mandado de captura internacional. Tudo isto deveu-se ao facto de Rui ter obtido informações que não devia e as ter disponibilizado aos jornalistas.
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